Inspirado por livro de Joseph Brodsky, um roteiro de Veneza no inverno, longe das multidões
Publicada em 10/12/2010 às 15h52m
Rachel Donadio, do New York Times
VENEZA - Há anos eu não voltava a Veneza, até que tive que ir a trabalho. Era novembro; as árvores espalhadas da cidade começavam a ganhar tons de marrom. A luz, como de costume, estava incomparável e havia um frio levemente molhado no ar. Amei, imediatamente. Ou melhor, eu me lembrei de como eu amava essa cidade. A Itália é capaz de alterar suas perspectivas de uma forma estranha. As recordações de um lugar podem se tornar mais reais que o lugar propriamente dito. Convivi por anos com a Veneza das minhas lembranças - viajei para lá aos 19 anos, bebendo mate gelado de pêssego no calor de julho, descobrindo as pinturas de Giorgione - e em novembro passado eu voltei. Mais madura; Veneza também. A visita me aguçou o apetite, e não muito tempo depois, retornei num fim de semana gelado de janeiro, munida de muitos casacos, botas e um exemplar do conhecido "Marca d'água", de Joseph Brodsky, o maravilhoso poema em forma de prosa sobre Veneza no inverno, que seria o meu guia pela cidade. É mais um roteiro emocional do que prático, mas, eu diria, confiável. Em Veneza, os mapas falham. E, como todos sabem, estar numa cidade flutuante é sentir-se perdido e desorientado para sempre, como num labirinto. Naquela incursão em novembro, ouvia um grupo de estudantes americanos conversando enquanto passeavam perto da Ponte Rialto:
- Não me importo se passamos o dia todo meio perdidos. Acho que não temos escolha.
No inverno, passeio pelo Palácio dos Doges é feito sem filasGoethe não faria melhor. Veneza, como ele escreveu, só pode ser comparada a ela mesma. Muito já se falou sobre Veneza, em obras de escritores maravilhosos como Goethe, Henry James, Evelyn Waugh, mas o que é mais notável é que em 1992, Joseph Brodsky conseguiu, em "Marca d'água", criar uma bela obra sobre esta cidade, tão desgastada por clichês.
Eu nunca viria no verão, nem mesmo sob a mira de um revólver. (Joseph Brodsky)
Na ida de trem, abri o livro e de suas páginas caiu o marcador de uma livraria de Roma onde trabalhei por um tempo depois da faculdade e onde li "Marca d'água" pela primeira vez numa tarde de pouco movimento. No verso do marcador escrevi uma citação de Philip Larkin - "...lá fora, a agitação incompleta do vento" e, misteriosamente, alguns termos filosóficos: "ontologia: a filosofia do ser; epistemologia: estudo do conhecimento científico e seus limites". Classificações bem apropriadas para uma cidade que o tempo todo testa os limites de sabedoria de uma pessoa.

No verão, Veneza é tórrida, cheia até as brânquias com os 18 milhões de turistas que superlotam a cidade a cada ano, entupindo suas pontes, inchando seus vaporettos, extrapolando o número de moradores (271 mil), já famosos por seu nervosismo, fazendo a cidade parecer uma imensa Disneylândia flutuante - uma metáfora perversa para a Itália, se não toda a Europa, um lugar que planeja o futuro vendendo a imagem de seu passado e pode estar se destruindo neste processo.
Aquela estação não era para Brodsky. "Eu nunca viria no verão, nem mesmo sob a mira de um revólver", escreveu em "Marca d'água". O poeta nascido na Rússia almejava o frio. Numa série de apartamentos alugados ao longo de uma série de janeiros até o fim de sua curta vida, ele vinha, congelava e escrevia. Brodsky, que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1987, morreu aos 55 anos, em 1996; seu corpo está enterrado em San Michele, a maravilhosa ilha cemitério de Veneza.
Você escancara as janelas e o quarto é instantaneamente inundado pelo exterior, neblina impregnada do repicar dos sinos, parte oxigênio úmido, parte café e parte orações. (Joseph Brodsky)
"No inverno você acorda nesta cidade, especialmente aos domingos, para o repicar de seus inúmeros sinos, como se por trás de suas finas cortinas transparentes um aparelho de chá de porcelana gigante vibrasse numa bandeja de prata no céu cinza-perolado", escreveu Brodsky. "Você escancara as janelas e o quarto é instantaneamente inundado pelo exterior, neblina impregnada do repicar dos sinos, parte oxigênio úmido, parte café e parte orações."
Li aquela passagem no café da manhã, em meio a capuccinos com montes de espuma que pareciam os chapéus pontudos dos antigos magistrados de Veneza (os doges), antes de me aventurar pela cidade. A primeira parada no meu itinerário era o Palazzo Ducale, que abrigou os magistrados que governaram Veneza por séculos. Nunca tinha entrado lá - no verão, as filas dão a volta no quarteirão e eu sou uma turista impaciente.
Naquela manhã de janeiro, deixei minha confortável pensione e me arrisquei pelo ar úmido. Não tive problemas em me juntar a um tour que tinha uma visita à cela onde Casanova, o infame amante e libertino, ficou preso sob acusações que incluíam blasfêmia e maçonaria, antes de sua fuga audaciosa - ajudada, ao que parece, por guardas que odiavam tanto seus inquisidores quanto ele.

No alto do palácio, os escritórios do doges eram como pequenos caixotes de madeira, surpreendentemente modestos, mas agradavelmente quentinhos. Mas numa das salas públicas, onde o Conselho dos Dez, que governou Veneza por quase cinco séculos até aproximadamente 1800, se reunia para julgar fazia tanto frio que dava para ver minha respiração.
O palácio era um glorioso covil de segredos, cenário para muitas intrigas. Numa sala, eram mantidos armários com poções venenosas que não deixavam vestígios. Em outra, a porta para a escada que levava a uma prisão secreta era disfarçada como um armário para arquivar documentos (na Itália, a burocracia é sempre uma desculpa para as decepções). Na câmara de torturas, onde os prisioneiros encontravam seus inquisidores, a escuridão fazia parte do castigo, explica o guia. Nesta cidade de luz resplandecente, como poderia deixar de ser?
Em dias ensolarados, a luz de inverno é brilhante e clara; mas nos dias cinzentos, é difusa e terra e água se fundem. Em "Marca d'água", Brodsky explica a alguns de seus céticos inquisidores em Nova York porque ele é atraído a Veneza no inverno: "Pensei em contar a eles sobre a acqua alta (quando o nível de água se eleva tanto com as chuvas de inverno que alaga a cidade); sobre as várias sombras de cinza na janela, que se avista quando se toma o café da manhã no hotel, envolvido em silêncio e num manto de mistério da manhã que encobre a face dos recém-casados; sobre pombos acentuando cada curva e cornija do barroco local em sua afinidade latente com arquitetura... sobre o corajoso pardal que se empoleira numa borda da gôndola, diante de um pano de fundo de uma infinidade de vento morno e turbulento".
Pensei em contar a eles sobre a acqua alta (...); sobre pombos acentuando cada curva e cornija do barroco local em sua afinidade latente com arquitetura... (Joseph Brodsky)
O tempo passa em Veneza distorcido pela luz e pela água. Assim como o som. O que eu amo mais sobre a cidade é a gloriosa tranquilidade, e seu ritmo estranho, como se a vida andasse em câmera lenta. Em Veneza, a pressa não vai levar a lugar algum - talvez faça você se perder mais rapidamente. Por isso, é melhor andar vivamente no inverno, uma vez que a cidade é tão úmida, o ar que circula pelos canais tão congelante, que você terá que seguir se movimentando para se manter aquecido.
Flanei por incontáveis becos, parando algumas vezes para um café, passando por grupos de gondoleiros que saltitavam sobre seus pés para se proteger do frio, enquanto convocavam os turistas para um passeio de inverno. Os locais se cobriam de casacos de pele e chapéus. Comprei um par de luvas marrons e fúcsia numa pequena loja que eu talvez nunca mais consiga achar.
Luzes das trattorias acenam ao visitante como abrigos de calor

No inverno, as luzes de cada trattoria acenam como pequenos abrigos de calor contra o frio úmido. Ao entrar, os óculos se embaçavam sempre. Mais do que seus pares do Sul, os venezianos bebem. Parti para um prosecco no almoço. Não é uma bebida que aquece, mas harmoniza bem com peixe frito e tiras de polenta frita ou sarde in saor (sardinha marinada com cebolas e vinagre doce). Nos 40 dias que antecedem o carnaval, quando a cidade vira um zoológico de inverno, as confeitarias vendem fritelles - fantásticos bolinhos com passas e recheados com ricota ou zabaglione - uma refeição por si, e memorável.
Meu amor por Veneza não começou lá, mas em Boston, quando aos 12 anos visitei o Stewart Gardner Museum, onde colecionadores americanos reconstruíram uma amostra de palácio veneziano no meio de Nova Inglaterra. Esta visita também insuflou meu gosto por casas transformadas em museus, com a idiossincrasia de um acervo montado por apenas um colecionador. Veneza é repleta de locais assim, desde o Palazzo Grimani, em estilo românico e que já abrigou uma notável acervo arqueológico do século XVI, ao Museo Fortuny, com uma pilha desintegrada de tecidos opulentos da dinastia têxtil Fortuny.
Mas naquele fim de semana de inverno, com seu céu cinzento achatado por finas nuvens, era hora de revisitar a coleção Peggy Guggenheim, que pode bem ser o melhor museu numa mansão de século XX no mundo. Dentro de uma despretensiosa casa rebaixada, me apaixonei pelo pé de cama de prata, assinado por Alexander Calder, com sua alegre cena subaquática, e contemplei a "Floresta encantada" de Jackson Pollock, uma pintura gestual que vibra numa velocidade maior que qualquer outra coisa em Veneza.
No futuro que se abre à frente / as manhãs são ancoradas como barcos. (Eugénio Montale)
Mas, mesmo aqui, na melhor das coleções, a arte ainda é secundária em relação à água. Do lado de fora das janelas respingadas, os canais corriam verde jade. Os barcos cortados por suas amarras. Lembrei de um dos meus versos favoritos do poeta italiano Eugénio Montale: "No futuro que se abre à frente / as manhãs são ancoradas como barcos." Em italiano, ancora pode ser traduzido para o inglês tanto como "ainda" - "você ainda está comigo" - ou como âncora, como se o mundo por si se fixasse num só lugar, preso entre o passado e o futuro.
É o tipo de ambiguidade que Brodsky apreciaria. "Marca d'água", eu suspeito, é sua resposta ao grande poema de Montale "A enguia", sobre a criatura que, como Brodsky, viajou do Báltico ao Mediterrâneo (dois córregos na torrente da vida).

Na Fundação Querini Stampalia, outra das preciosas casas-museus de Veneza, amei o som da água fluindo pelos cômodos no térreo, que foram renovados nos anos 1960 pelo arquiteto italiano Carlo Scarpa. No andar de cima, salas barrocas do século XVI foram recheadas com arte. A coleção inclui "Apresentação no templo", de Giovanni Bellini, onde Maria levemente ruborizada estende o menino Jesus enfaixado como um pacote em forma de cone, e várias pequenas telas de Pietro Longhi, cujos pequeno nobres venezianos de cara redonda parecem sempre estar aprontando alguma.
Na loja do museu, encontrei uma cópia de "Minha fuga da prisão de Veneza", de Casanova, na qual ele relata suas aventuras. Início de um capítulo: "A fuga, eu quase perdi minha vida no telhado; Saio do Palácio Ducal, pego um barco, e chego a terra firme; Perigo a que me exponho, por causa do padre Balbi; Meu esquema para me livrar dele."
Felicidade de um dia frio e nevadoTarde da noite na Piazza San Marco, me deparei com um grupo de alemãs improvisando uma festa. Trouxeram a comida em potes de plástico e usavam os tapumes da acqua alta como mesas improvisadas. Estourando uma garrafa de prosecco, cantavam "Parabéns para você" em alemão, as vozes desafinadas ecoavam no ar vazio da noite. À meia-noite, os sinos ressoavam pela imensidão da Piazza San Marco, que estava lisa e fria como um rinque de patinação, e vazia, exceto por um ambulante vendendo bolsas falsificadas, um policial patrulhando as esquinas tranquilas e o leão alado no alto de sua coluna, ancas esticadas eternamente em direção à laguna.
Como os pombos de São Marcos, estão por toda parte (...) até que, de repente, a arma do meio-dia disparou e num momento, como uma vibrante varredura de asas, o chão estava nu e todo o céu escureceu com o tumulto das aves. (Evelyn Waugh)
No inverno, de dia, mesmo os pombos na praça parecem deprimidos. Numa passagem de "Brideshead revisited" em que a narradora medita sobre sua vida, Evelyn Waugh os relaciona a suas lembranças. "Estas memórias, que são minha vida - em que não possuímos nada a não ser o passado - estavam sempre comigo", começa. "Como os pombos de São Marcos, estão por toda parte, sob meus pés, isoladamente, em pares, em pequenos grupos, ciscando, empertigando-se, piscando, revirando as penas de seus pescoços, empoleirando-se, às vezes, se eu parava imóvel, nos meus ombros, ou bicando um biscoito quebrado por entre os meus lábios; até que, de repente, a arma do meio-dia disparou e num momento, como uma vibrante varredura de asas, o chão estava nu e todo o céu escureceu com o tumulto das aves".

Li este trecho quando era jovem, e me marcou de tal forma, que quando eu visitei Veneza aos 19 anos - hospedada num albergue horrível na Giudecca, administrado por freiras ranzinzas, onde eu observava o sol se por atrás de Dorsoduro a cada entardecer - me senti como se eu já conhecesse aqueles pombos. Naquela primeira visita a Veneza e todas as vezes depois, uma coisa não mudou: eu não queria ir embora. Como o fim de semana de Brodsky levava a um final, estava melancólica, relutante em voltar à vida caótica que me esperava, uma vez que o trem atravessasse a estreita ponte rumo à terra firme - terra firmacomo os locais falam, como se Veneza fosse um navio perdido no mar.
Naquela tarde, conforme eu voltava à estação de trem com minha mala, flocos molhados de neve molhada começavam a cair. Seguindo meu caminho, me perdi algumas vezes, mas não me importei. Anzi, como os italianos diriam, au contraire. Pensei que esta fosse a verdadeira felicidade: sentir-se meio perdida em Veneza num dia frio e nevado.
HOTÉIS
La Villeggiatura: Os quartos são elegantes e quentes. No inverno, diárias a partir de 100 euros, com café da manhã e wi-fi incluído. Calle dei Botteri, San Polo. Tel. (39 41) 524 4673.www.lavilleggiatura.it
Ca' del Nobile: Junto à Piazza San Marco. No inverno, quartos a partir de 80 euros, com café da manhã, wi-fi e um visita à fábrica de vidro de Murano. San Marco 987. Tel. (39 41) 528 3473.www.cadelnobile.com
RESTAURANTES
Majer: Serve frittelle, uma massa frita recheada de ricota, zabaglione e outras maravilhas calóricas, por 1 euro. Piazzale Roma, Santa Croce 287/A. Tel. (39 41) 710 385. E Santa Margherita, Dorsoduro 3.108/D. Tel. (39 41) 528 9014. www.majer.it
Al Covo: Especializado em peixe. O fritto misto é uma delícia. O menu completo sai por 53 euros. Castello 3.968. Tel. (39 41) 522 3812. www.ristorantealcovo.com
Osteria Ca d'Oro alla Vedova: Serve as almôndegas mais macias de Veneza e polpo al umido, polvo cozido no molho de tomate. Preço médio de 25 euros. Cannareggio 3.912. Tel. (39 41) 528 5324.
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